Trechos do livro "O Arroz de Palma" de Francisco Azevedo
"Família é prato
difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema...Não
é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até
vontade de desistir...Mas a vida... sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e
abrir o apetite.
O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os
lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais
inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e
comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes
do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele, o que surpreendeu
e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente...
Já
estão aí? Todos? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais
afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho
e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que emociona. E a gente
chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza. Primeiro cuidado: temperos
exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza,
estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem
estranhas ao paladar tornam a família muito mais colorida, interessante e
saborosa. Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou
daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre.
Família é prato extremamente
sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é
preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide
meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha
desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.
Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à Rossini,
Família à Belle Manière; Família ao Molho Pardo (em que o sangue é fundamental
para o preparo da iguaria).
Família é afinidade, é à Moda da Casa. E cada casa
gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo.
Uma
família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Enfim, receita de
família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos,
improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro
ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel.
Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio
caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem
graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que
experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas.
Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou
no barro.
Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando
se acaba, nunca mais se repete." |
domingo, 3 de junho de 2012
"FAMILIA"
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